domingo, 31 de dezembro de 2017

Hitler e as "raças asiáticas"

Em dezembro de 1942, Hitler realizou uma reunião sobre os Países Baixos com Mussert, Seyss-Inquart, Himmler, Lammers, Schmidt e Bormann. As notas da reunião, escritas por Bormann, foram publicadas em 1976 na coleção "De SS en Nederland Documenten uit de SS-archieven 1935-1945", que recentemente foi disponibilizada através da NIOD e Wikimedia Commons aqui em dois arquivos "pdf". O primeiro arquivo, das páginas 893-899, reproduz o registro da reunião de Bormann.

Em uma de suas principais passagens, Hitler retrata a guerra no Oriente como uma luta de vida ou morte, porque os bolcheviques exterminariam todos os estratos europeus (pág. 895). Hitler também deixa claro que sua oposição aos bolcheviques é racial, não política ou ideológica: a Alemanha está contra as raças asiáticas que pretendam destruir a civilização europeia e impor mistura racial (pág. 894).

Essas observações podem ser comparadas com outras fontes. Hitler foi, em parte, ecoando a formulação de Diewerge "Quem deveria morrer - alemães ou judeus?". No mesmo dia em que Bormann produziu suas anotações, Goebbels escreveu em seu diário: "O judeu deve pagar por seu crime, assim como nosso Führer profetizou em seu discurso no Reichstag; a saber, pela extinção da raça judaica na Europa e possivelmente no mundo inteiro." Crucialmente, no entanto, os comentários de Hitler não eram apenas antissemitas, mas apontavam a vontade de exterminar toda a vida "asiática" em seu caminho, pois era incompatível com sua visão da civilização europeia. Eles, portanto, convergem com os objetivos de fome de maio de 1941, nos quais os nazistas estavam dispostos a condenar à morte trinta milhões de pessoas (ver, por exemplo, Kay, pág. 689), e o plano de destruir totalmente as principais cidades soviéticas e tornas as áreas inabitáveis (veja aqui).

Fonte: Holocaust Controversies
http://holocaustcontroversies.blogspot.com/2017/12/hitler-and-asiatic-races.html
Texto: Jonathan Harrison
Título original: Hitler and the "Asiatic Races""
Tradução: Roberto Lucena

sábado, 30 de dezembro de 2017

Extermínio de crianças em Daugavpils, Letônia

De acordo com este site, pesquisando por Jacob Gorfinkel, "De acordo com a distribuição do "cartão de comida" em junho de 1942, restaram 487 judeus (245 homens, 242 mulheres, 22 crianças) em Daugavpils". O baixo número de crianças é uma forte prova de uma política de extermínio na Letônia. Converge com a evidência fotográfica de Liepaja, Letônia, e a outra evidência sobre a Letônia publicada anteriormente neste blog. Também reforça a evidência do massacre de Rumbula em Riga, como é ressaltado no Relatório de Situação Operacional 155, de 11.1.42: "O número de judeus restantes em Riga, 29.500, foi reduzido para 2.600 por uma ação conduzida pelo Superior SS e líder da polícia de Ostland. Em Daugavpils, ainda restam 962 judeus que são urgentemente necessários para o grupo de trabalho". Isto foi no contexto mais amplo de redução da população judaica letã de cerca de 70.000 para menos de 4.000 [Relatórios dos Territórios Ocupados do Leste, nº 7, 12,6,42].

http://holocaustcontroversies.blogspot.com.br/2017/04/extermination-of-children-in-daugavpils.html

Fonte: Holocaust Controversies
http://holocaustcontroversies.blogspot.com/2017/04/extermination-of-children-in-daugavpils.html
Texto: Jonathan Harrison
Título original: Extermination of Children in Daugavpils, Latvia
Tradução: Roberto Lucena

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Os primeiros números (estimativas) do Holocausto

A historiografia, ou seja, a história da história, pode vir a ser fascinante, mas é pouco apreciada pelo grande público. É muito mais interessante para os leitores, por exemplo, uma história da guerra civil dos Estados Unidos, e não um estudo sobre como evoluiu o conhecimento sobre esta guerra nos últimos 150 anos.

Mas parece que há uma exceção à regra, na internet do século XXI: a historiografia do Holocausto.

O primeiro estudo sobre o Holocausto, em inglês, publicado em Londres em 1953, em Nova Iorque em 1954, e traduzido para o alemão em 1956, é este de Gerald Reitlinger: "A solução final. A tentativa de exterminar os judeus da Europa, 1939-1945", que se seguiu reeditando até 1982, que eu saiba. O autor foi se preocupando em ir atualizando o livro em sucessivas reedições até sua morte em 1979, refletindo a aparição de outros estudos e o descobrimento de nova documentação (por exemplo, ainda não haviam descoberto os relatórios de Koherr), mas mantendo o essencial de suas linhas mestras.

Sou o afortunado proprietário de um exemplar da segunda impressão do livro de Reitlinger, "The Final Solution", lançada no mesmo ano de 1953. Ou seja, é idêntica à primeira edição, que pelo visto se esgotou em pouco tempo, sendo assim imprimiram uma nova tiragem nesse mesmo ano.

Na continuação fotografo a páginas com o dado que o autor calculou para Auschwitz. Como se pode ver, e como já foi repetido tantas vezes, dois anos antes que o governo polonês abrisse ao público o Memorial de Auschwitz, Reitlinger estava muito longe da estimativa de "quatro milhões":

Observe-se além disso que, na citação superior do relatório soviético, não mencionam que as vítimas sejam majoritariamente judias, só cidadãos da URSS, Polônia, França....

E quanto ao número total... é usada a estimativa "mágica" de seis milhões? Não. Ainda que um comitê anglo-americano de 1946 houvesse calculado esses seis milhões, do que depois se restou cerca de uns 308 mil refugiados, os cálculos de Reitlinger situam suas estimativas entre 4.194.200 e 4.581.200:

A grande diferença de números está nos mais dificilmente comprováveis (em 1952), da Polônia, Romênia, ou da URSS, que além disso mudaram e muito suas fronteiras entre 1939 e 1953. Por exemplo, nas fronteiras da Bulgária, anterior a 1939, não foram deportados judeus para a Alemanha, mas sim de diversas zonas que ocuparam da Iugoslávia e Grécia, por isso que Reitlinger não soma os 5.000 do Comitê de 1946.

Contracapa desta primeira reimpressão. Seu sucesso, para um livro deste tipo, atrasou a publicação do estudo de Hilberg em seis anos. Os editores acreditavam que não houvesse mercado para outro livro sobre o mesmo tema.

Fonte: blog antirrevisionismo (El III Reich y la Wehrmacht), Espanha
https://antirrevisionismo.wordpress.com/2017/09/15/primeras-cifras-holocausto-mito-seis-millones/
Título original: Las primeras cifras del holocausto
Tradução: Roberto Lucena

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Crimes de guerra na Bielorrússia (Belarus), meados de 1943

A exposição NO-3028 de Nuremberg é uma série de relatórios que suscitam preocupações sobre as atrocidades cometidas em operações anti-partisans na Rutênia Branca (Bielorrússia). Esses documentos foram publicados aqui por David Thompson em 2004. O mais pertinente é talvez aquele do "membro do partido", Lange:

Estou enviando a seguinte comunicação privada para sua informação. Dr. Walkewitsch, o chefe de ação da WSW veio até mim.

Ele foi informado pelo Sr. Sakowitsch, ex-chefe do território [Gebietsvorsitzender] do WSW no condado de Minsk que, em 27 de maio de 1943, às 14h00, a SS e/ou os ucranianos conduziram os habitantes de Krjvsk juntos para duas casas e para depois incendiar as casas para que aqueles dentro delas queimassem até a morte.

O mesmo aconteceu com a aldeia de Krashyn em 24 de maio de 1943. Ambas as aldeias estão localizadas no distrito de Woloshin, no território de Vilijka.

Normalmente, o escritório de Himmler rejeitou tais preocupações. No último documento da exposição, Brandt afirma que "[Himmler] solicita que o Ministro do Reich para o Leste seja informado de que a campanha contra os partisans andará conforme o cronograma e que Volhynia e Podolia serão as próximas da lista." O subtexto aconselhava Rosenberg a dizer aos seus subordinados que abandonassem suas queixas. Veja a excelente análise de Leo Alexander sobre esta troca, publicada aqui em 1948.

Fonte: Holocaust Controversies
http://holocaustcontroversies.blogspot.com/2016/01/war-crimes-in-belorussia-mid-1943.html
Texto: Jonathan Harrison
Título original: War Crimes in Belorussia, mid-1943
Tradução: Roberto Lucena

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Documentação fotográfica do assassinato de uma mulher e uma criança em Miropol

Esta fotografia foi tirada pelo soldado eslovaco, Skrovina Lubomir, em Miropol, na Ucrânia, em outubro de 1941. É uma das duas fotografias conhecidas que documentam o fuzilamento de mulheres e crianças de perto em um parque público por policiais ucranianos anexados ao Batalhão de Polícia da Ordem 303. Lubomir testemunhou em Praga em 1958 que estava em uma unidade de pontes de guarda quando ele e dois outros foram designados para participar da execução, no qual 94 judeus (incluindo 49 crianças) foram assassinados. Os dois atiradores na foto são ucranianos, os 3 comandantes da Polícia da Ordem são alemães.

A fonte da foto é o USHMM, originalmente do Security Services Archive (Arquivo de Serviço de Segurança), Praga, H-770-3.0020. A fonte do contexto e referência arquivística é de Wendy Lower, "'Axis Collaboration, Operation Barbarossa, and the Holocaust in Ukraine'" ('Colaboração do Eixo, Operação Barbarossa e Holocausto na Ucrânia'), em A. Kay, J. Rutherford e D. Stahel (eds.), "Nazi Policy on the Eastern Front, 1941: Total War, Genocide, and Radicalization" (Política Nazi na Frente Oriental, 1941: Guerra Total, Genocídio e Radicalização), Boydell & Brewer, 2012, p.200.

Fonte: Holocaust Controversies
http://holocaustcontroversies.blogspot.com/2017/11/photographic-documentation-of-shooting.html
Texto: Jonathan Harrison
Título original: Photographic Documentation of the Shooting of a Woman and Child in Miropol
Tradução: Roberto Lucena

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Quem traiu Anne Frank? Caso em aberto

Anne Frank (segunda a partir da esquerda), com suas
amigas, em 1939.
Uma equipe reabre a investigação a partir do achado de uma lista com os informantes dos nazis em Amsterdã.

Quem traiu Anne Frank e sua família e amigos judeus durante a Segunda Guerra Mundial? A pergunta foi feita durante décadas por múltiplos historiadores, escritores e jornalistas, mas ninguém conseguiu encontrar uma resposta fiável. Um agente jubilado do FBI se pôs agora no comando de uma equipe internacional de especialistas para buscar, usando técnicas policiais, novas pistas que permitam identificar o traidor.

O ex-agente Vince Pankoke, de 59 anos, está tratando de resolver a história pergunta e a mais frequente entre os visitantes do Museu Casa de Anne Frank em Amsterdã: a fonte que informou e permitiu os nazis descobrirem em 1944 o esconderijo dos Frank na rua Prinsengracht da capital holandesa.

As tentativas anteriores não chegaram a grandes resultados, mas esta equipe, composta por especialistas procedentes de diferentes partes do mundo, utiliza sua experiência, múltiplas técnicas usadas em casos frios e informação privilegiada de arquivos históricos de outros países para encontrar as respostas.

Na equipe de 19 pessoas figuram criminólogos, historiadores, jornalistas e informáticos, assim como um ex-chefe da unidade de Ciências do Comportamento do FBI, Roger Depue. A Holanda também se voltou para colaborar neste estudo, permitindo o acesso ao Arquivo Nacional dos Países Baixos, o instituto de guerra, os relatórios sobre o Holocausto e o genocídio, a prefeitura de Amsterdã etc.

Os investigadores estão fazendo uso de um novo software que pode organizar e analisar grandes quantidades de dados. A companhia Xomnia de Amsterdã, especializada no processamento de informação, está proporcionando suporte e inteligência artificial para a investigação.

"Há tanta informação disponível, de arquivos e velhas pesquisas, que para um ser humano é difícil de vincular e analisar, mas com bons programas de ordenador é possível fazer isso, pode-se analisar e fazer conexões", afirmou Pankoke, segundo a imprensa holandesa.

A ideia de iniciar este novo estudo veio do cineasta holandês Thijs Bayens e do jornalista Van Twisk. Ambos se reuniram com o ex-agente do FBI, que se aposentou no ano passado, para lhe pedir que dirigisse esta investigação na qual há também um ex-oficial da polícia holandesa.

Depois da segunda guerra mundial, os soldados estadounidenses reuniram toda a informação disponível e a enviaram para os Estados Unidos. Todos esses documentos estão num arquivo com o qual Pankoke passou horas nos últimos meses em busca de pistas. Entre outras questões, descobriu uma lista de informantes dos alemães em Amsterdã. "Os especialistas com os quais falei depois não sabiam da existência desta lista", assegurou.

Em 4 de agosto de 1944, depois de dois anos na clandestinidade escondidos num anexo da rua Prinsengracht, 263, de Amsterdã, Anne Frank foi presa junto com sua família. A traição parecia ser a única conclusão lógica que desembocou nesta detenção, mas a fonte segue sendo uma incógnita até os dias de hoje.

Quando Otto Frank regressou de Auschwitz, descobriu que era o único sobrevivente das oito pessoas que haviam se escondido em Prinsengracht. Sua esposa, Edith, suas duas filhas Margot e Anne, o dentista Fritz Pfeffer e os demais amigos judeus haviam morrido nos campos de concentração da Alemanha e Polônia.

Imediatamente depois da guerra, Otto iniciou uma investigação sobre a traição. O principal suspeito por isso até então era um dos trabalhadores do armazém, Wilhem van Maaren. Contudo, dois investigações, uma em 1947 e outra em 1963 lhe exoneraram de culpa por falta de provas.

Pankoke lançou uma página na web para recolher toda a informação útil que já apareceu nessas décadas para sua investigação. Durante os últimos 73 anos, várias pessoas tentaram resolver o mistério da traição, o que resultou em cerca de trinta suspeitos: um vizinho? um antigo empregado? uma faxineira? Pankoke está no caso.

Fonte: El Mundo (Espanha)
http://www.elmundo.es/cultura/2017/10/03/59d3441e268e3e46328b457d.html
Título original: "¿Quién traicionó a Ana Frank? Caso abierto"
Tradução: Roberto Lucena

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

"Ninguém verdadeiramente perseguiu os nazis após a guerra". Livro sobre Mengele

Josef Mengele devorou-se a si próprio

La disparition de Josef Mengele é um brilhante mergulho na intimidade de um monstro nazi, nos seus anos de fuga na América do Sul. Ao entrar no quotidiano, inicialmente ostensivo depois sórdido, do “médico” de Auschwitz, o autor explica como ele escapou à justiça dos homens durante 40 anos mas como foi castigado: devorando-se.

Jan Le Bris de Kerne. 2 de Dezembro de 2017, 16:40

O crânio de Josef Mengele mostrado aos jornalista em 1985 em Embu, Brasil
Robert Nickelsberg/Liaison
O Anjo da Morte, como lhe chamam, exerceu um fascínio perturbante. Em Auschwitz, mais tarde quando conseguiu fugir e desaparecer e depois da sua morte, quando o mundo descobriu a ignomínia das suas actividades. O doutor Mengele, médico sinistro que inflingiu sem piedade os maiores sofrimentos a milhares de deportados nos campos da morte, em nome da experiência médica e do apuramento da raça ariana, era afinal um miserável e obscuro capitão das SS proveniente da burguesia bávara, cobarde, frio e obsessivo, e que se conseguiu esconder na América do Sul durante tantos anos depois do final da II Guerrra graças à acção conjunta do dinheiro da sua família, das cumplicidades locais, tanto na Baviera como nos países de acolhimento, da solidariedade dos exilados nazis e da complacência de governos como o de Perón na Argentina, mas também do Paraguai ou Brasil. Isso permitiu ao “médico” de Auschwitz viver alguns belos anos nas melhores condições, com estreias de ópera, jantares elegantes e soirées de deboche nos bordéis chiques de Buenos Aires.

O nome “Anjo da Morte”, o seu desaparecimento quase sobrenatural, as numerosas lendas que o rodeiam, hipnotizaram as pessoas e anestesiaram percepções. É elevado a encarnação maléfica demoníaca. Ou não. Olivier Guez recusa de forma vibrante esta transfiguração de Mengele, que segundo o autor é um homem como os outros, mais normal do que quereríamos que fosse, tragicamente humano, na verdade, que obedecia às ordens, que construía a sua pequena carreira, vaidoso e indiferente ao sofrimento que o rodeava. Até ao fim viu-se como executor de ordens, obediente e ao serviço da grandeza alemã.

PÚBLICO - Foto. Olivier Guez, 43 anos,
nascido em Estrasburgo, é escritor,
jornalista, ensaísta JF
O grande interesse do romance de Olivier Guez (porque é um romance de não ficção, ou seja, muito fiel à realidade e abundantemente documentado) é que relata com precisão os protagonistas e os fatos da fuga do criminoso de guerra como uma câmara de espionagem: o autor infiltra-se o mais possível perto de Mengele. Este vai meter-se, de forma inexorável, num longo caminho da cruz feito de solidão, de terror, de raiva e paranoia. Uma lenta queda começa nas várias quintas que o aceitaram esconder a troco de somas exorbitantes.

Doente e insone, afunda-se. A sua decadência mental e física, o isolamento e abandono, o seu fim longe do seu país, entregue aos seus demônios em condições materiais sórdidas: tudo isto foi o castigo terrestre, aquele que a justiça dos homens não soube dar-lhe. Mengele acabou por se devorar a si próprio.

Na altura em que o mundo ocidental assiste ao ressurgimento dos populismos e à dissolução dos ensinamentos da paz forjados sobre as cinzas de milhões de vítimas da barbárie, Olivier Guez conclui assim a sua obra: “A cada duas ou três gerações, quando a memória se esvai e quando as últimas testemunhas dos massacres precedentes desaparecem, a razão eclipsa-se e os homens recomeçam a espalhar o mal”.

Olivier Guez, 43 anos, nascido em Estrasburgo, é escritor, jornalista, ensaísta. Co-escreveu o filme “Fritz Bauer, un héros allemand” sobre o procurador que encontrou os traços Adolf Eichmann, o cérebro do Holocausto. Fascinado pelos períodos dos pós-guerras, expõe nesta conversa o seu método, a sua intenção literária. Este livro, de uma atmosfera cirúrgica e que soa como uma premonição, vinda do passado, acaba de receber o Prix Renaudot.

Como é que organizou o seu trabalho?

Há dez anos que trabalho sobre os pós-guerras, quer seja na Europa, na Alemanha ou na América do Sul, portanto não descobria todas estas questões trabalhando sobre Mengele. Tinha escrito “L’Impossible Retour, une histoire des juifs depuis 1945» [O Regresso Impossível, a história dos judeus desde 1945], onde contava a história dos judeus na Alemanha depois da guerra e, sempre em espelho, a relação dos alemães com o seu passado, seja a nível político ou simbólico, mas também de ponto de vista judicial. De seguida escrevi [com Lars Kraume] o argumento do filme “Fritz Bauer, un héros allemand” [Fritz Bauer, um herói alemão], onde se contava como esse grande procurador tinha colaborado com a Mossad, pois é ele que lhes dá a informação da presença de Eichmann na Argentina. E ao trabalhar na preparação do filme, li muito sobre a Argentina dos anos 50 e nesse momento “cruzei-me” várias vezes com Mengele. Disse a mim próprio que ainda havia alguma coisa para fazer relativamente aos nazis na Argentina. Toda a gente sabe que muitos nazis partiram para a América do Sul, mas não se sabe grande coisa, é pouco nítido. Nem tudo tinha ainda sido dito. Existe uma grande bibliografia, mas aqui não conhecemos muito bem o contexto sul-americano. Pensei que havia uma história para contar. Mengele não foi preso, não foi julgado, e morreu velho em 1979. Então existe este mistério: por que razão nunca foi ele preso? Depois há também todas as histórias que se contava sobre ele (por exemplo, as aldeias de gêmeos que teria criado), tudo isso é uma treta. Faltava-me separar o verdadeiro do falso. E depois há a questão mais filosófica: é verdade que ele não foi julgado, mas terá ele sido castigado em algum momento? O que é que a vida lhe reservou? Quem é o “Mengele após Mengele”?

Que tom quis dar ao texto? Como classifica o ambiente estilístico do livro?

Queria qualquer coisa seca, áspera, tensa, não era necessário que o livro fosse uma zona de conforto para o leitor. Nenhum desvio, nenhuma grande demanda onde o autor se coloque em cena, nada de metáforas, nada de grandes descrições. Realmente qualquer coisa muito seca, como a dissecação de Josef Mengele na América do Sul.

PÚBLICO - Foto. Josef Mengele, à esquerda, seguido de Rudolf Hoss,
comandante de Auschwitz, de Josef Kramer, comandante de Belsen,
e de um oficial alemão não identificado Universal History Archive/Getty Images
A cada duas ou três gerações, quando a memória se esvai e quando as últimas testemunhas dos massacres precedentes desaparecem, a razão eclipsa-se e os homens recomeçam a espalhar o mal
Olivier Guez

Encontrou, na bibliografia e nos relatórios de entrevistas, matéria suficiente para reconstituir com precisão as conversas, os estados de espírito, os acontecimentos do dia-a-dia? Ou teve que entrar no campo da ficção?
Não existe diálogo no livro, ou somente discurso indirecto. Não coloquei as personagens a dialogar. Não tinha vontade de as fazer viver dessa maneira. É talvez a minha paixão por Thomas Bernhard [dramaturgo austríaco] que me levou a ter vontade de usar esse tipo de narração. Depois, na bibliografia encontra-se mesmo assim muita coisa. Vou dar-lhe um exemplo. A ligação entre Mengele e Gita Stammer [mulher do casal húngaro que durante vários anos o albergou na sua fazenda no Brasil]. Pelo que pude ler, tiveram uma relação. Onde, quando, como, durante quanto tempo, em que condições, ninguém jamais o saberá. Pelo que a partir do momento em que tenho 95 por cento de certeza que existiu uma ligação confirmada por diversas fontes, aí o romancista apodera-se da matéria e vai “inventar”, entre aspas, as condições dessa ligação.

Ou seja, teve mesmo que entrar na ficção…

Sim, claro, porque a vida de Mengele na América do Sul é totalmente de romance, a sua comitiva é de romance, a sua família é incrivelmente de romance, e consegui recolher muitas informações. Depois há também uma formatação que é ainda romanesca.

Existia já uma quantidade de obras e de estudos “sobre a pista de Mengele”. O que acha que trouxe de novo? A forma de romance permite tapar lacunas ou abrir novas vias?

O meu modelo foi “A Sangue-Frio” de Truman Capote, onde, após ter acumulado enorme quantidade de informações, ele escreveu um objeto literário sublime que ninguém contesta que seja literatura. É um romance verídico ou um romance de não-ficção. Foi o que tentei fazer. Um romancista tem mais liberdade do que um historiador ou um ensaísta. Um historiador necessita de uma carta ou um arquivo que confirme cada uma das suas frases. Eu tenho a minha própria objetividade, depois de ter lido imenso, após ter passado tanto tempo com Mengele, tinha a minha própria opinião sobre o seu perfil psicológico, mas tudo isso suportado por fatos concretos. A partir do momento em que coloquei Mengele no título, tinha uma responsabilidade direta com os leitores. Senão teria que criar uma personagem de ficção completa ou contar uma outra história. Aí está a vantagem do romancista para desenhar o retrato do criminoso em fuga. Durante toda a segunda parte brasileira Mengele já não é de todo um ator da história, ele esconde-se, e isso fornece um cenário fechado que é uma matéria literária formidável.

Você recorre frequentemente ao facto histórico como trama ou objeto dos seus livros. Por quê?

Sou obcecado pelos pós-guerras. No plural: 1914-1945 forma um período completo que é o suicídio da Europa. Há 85 milhões de mortos na Europa nesse período. É alucinante. E creio que ainda hoje vivemos nesse após. Estamos talvez na fase 2 ou na fase 3, mas penso que a Europa não consegue recuperar rapidamente de um tal trauma. Basta ver a quantidade de produção literária, cinematográfica, audiovisual, etc., sobre a guerra e o que se seguiu a ela. Assim, considerando que estamos sempre aí dentro, a fronteira entre a História e o presente é extremamente ténue. E vê-se bem na história de Mengele que ele entra na nossa modernidade. Por exemplo, enquanto ele escuta as suas peças de música clássica no gira-discos no seu terraço – aí está o velho nazi que escuta a sua música clássica –, quando vira as costas e vai embora, os adolescentes vão para lá ouvir Beatles. Eis o encontro com a nossa época. Mengele morreu em 1979, os seus restos mortais são descobertos em 1986, quando estamos já no tempo presente. À escala da História é apenas um grão de areia. Sim, interesso-me pela História, mas não escrevo sobre a Idade Média. Creio que a nossa Europa contemporânea é em larga medida constituída pelo que se passou entre 1914 e 1945.

PÚBLICO - Foto. Wolfgang Gerhard, alegadamente Josef Mengele,
ao centro, entre amigos numa fotografia tirada em data desconhecida
nos anos 70 Bettmann
Um romancista tem mais liberdade do que um historiador ou um ensaísta. Um historiador necessita de uma carta ou um arquivo que confirme cada uma das suas frases. Eu tenho a minha própria objectividade, depois de ter lido imenso, após ter passado tanto tempo com Mengele
Olivier Guez

Por que razão pode Mengele ser uma personagem de romance? O tema é delicado. Não se corre o risco de se dissolver o Mengele histórico naquele do romance, de fornecer contornos da verdade tão frágil e cruel, mais nebulosa, menos tangível, tornando-a ficção no tempo de um livro?

Desde já, não ficciono o Mengele de Auschwitz. Depois, conto a sua vida na América do Sul à minha maneira mas não atraiçoo a verdade histórica. Em terceiro lugar, invento bastante menos do que tudo aquilo que foi escrito sobre Mengele durante muito tempo. Não é por ter a palavra “romance” por baixo que se transforma numa ficção completa. É uma técnica literária [o romance de não-ficção] para contar uma história verdadeira.

Será que os contornos do Mengele de romance são mais fluidos? Não tenho essa ideia, o retrato que faço do homem e da sua cobardia é importante: eu queria mostrar que Mengele era um homem. Detesto quando se apresenta os nazis como marcianos, ou monstros, “o Anjo da Morte”, essas expressões – isso é bastante mais fácil e não é olhar de frente a verdade. E Mengele é um excelente exemplo da mediocridade do mal, que vai ainda mais longe que a banalidade do mal. Era muito importante mostrar quem se escondia por trás dessa personagem do mítico “Anjo da Morte”. Não tenho a impressão de que os seus traços sejam muito mais fluidos, na medida em que respeito a verdade histórica, não faço dele um herói, não há a menor empatia com a personagem, não estou dentro da sua cabeça, ponho-me antes ao lado dele e persigo-o como um detetive para mostrar a sua ruína.

Diz-se que o «Anjo da Morte» exercia, e talvez ainda exerça, um fascínio sobre o público. Será que o escritor e também investigador que você é também se sentiu fascinado por ele? De que forma o mal pode fascinar o escritor? E o público?

Há um mistério Mengele: por que é que ele não foi apanhado e onde é que ele se escondeu durante todos esses anos? O livro responde a isso, existem outros livros, evidentemente, e não tenho a certeza de que muita gente tenha lido as biografias de Mengele publicadas nos anos 80, que são as melhores; digamos então que Mengele se tornou o símbolo da barbárie nazi. Apesar de não ser mais do que um médico entre centenas de médicos, é um simples capitão das SS, não é, por exemplo, um Heydrich [Reinhard Heydrich, conselheiro próximo de Hitler e um dos planificadores do Holocausto]. O que ele fez em Auschwitz enquanto médico é uma traição quádrupla: há as experiências, há a triagem no cais de chegada [dos comboios de prisioneiros], há a falência absoluta das elites alemãs, o horror do que foi feito em nome da Alemanha, e depois há a sua fuga, donde o mito que foi mantido por, entre outros, Simon Wiesenthal [“caçador de nazis”]. Pessoalmente não tenho nenhum fascínio por ele, pelo que não utilizo a expressão “Anjo da Morte” no livro, excepto quando há outras personagens que a usam. Recuso esse fascínio.

Trabalhar longas semanas neste contexto pesado teve influência no seu estado mental, e isso alterou-o? Ou, pelo contrário, você trabalhou com o mesmo distanciamento de um cientista (ia dizer de um médico…)?

Isso pesou no início, quando ataquei verdadeiramente a sua biografia e o médico nazi nos campos de concentração. A partir do momento em que compreendi como iria contar esta história, a sua derrota, e como este homem era tão pequenino, e talvez o facto de nunca ter sentido a menor empatia com ele, isso permitiu-me sentir-me como um marionetista. O nome de Mengele causa um sentimento de pavor, como uma aranha, ou qualquer coisa infecta nesse nome, naquilo que ele evoca. Mas a sua ruína, e a partir do momento em que compreendi quais eram os seus traços, permitiu-me tornar-me este marionetista.

PÚBLICO -Foto. Josef Mengele no Brasil na década de 70, o segundo à esquerda,
entre amigos não identificados e Elsa Gulpian de Oliveira, a empregada com
quem teve um romance Robert Nickelsberg/The LIFE Images Collection/Getty Images
Primeiro: que é evidente que o nazismo não morreu em 1945. Segundo: que sem dinheiro ele não teria ido muito longe. Terceiro: que, no fundo, ninguém verdadeiramente perseguiu os nazis após a guerra (Olivier Guez)
Qual é a sua opinião pessoal, na medida do conhecimento que tem sobre o assunto, sobre o que se descobriu graças a si: a família, o círculo mais íntimo, os amigos, os cúmplices de todo o gênero, a Argentina, etc.? A inacreditável facilidade com que todos aceitaram, anulando toda a empatia e toda a compaixão pelas vítimas de Mengele?

Primeiro: que é evidente que o nazismo não morreu em 1945. Segundo: que sem dinheiro ele não teria ido muito longe. Terceiro: que, no fundo, ninguém verdadeiramente perseguiu os nazis após a guerra.

O que iria fazer sofrer mais Mengele no fim da sua vida – e o cúmulo da ironia para quem trabalhava sobre genética, filiação, raça – é o seu próprio filho. E também o facto de ter tido como últimas companhias mulheres não-arianas (uma húngara e uma brasileira, ainda por cima ambas pouco submissas). E o facto de ter sido privado do seu trabalho. Acha que Mengele recebeu na América do Sul um castigo pelos seus crimes? Que de alguma forma pagou, como numa roda de karma, pelo mal que infligiu?

Estou convencido de que se tivesse sido preso e julgado pelos alemães ele safar-se-ia. Já tinha escapado à incerteza que o roía durante 20 anos. Com os meios da sua família ele teria tido os melhores advogados da Alemanha. Depois, teria adotado a linha de defesa de Eichmann, “uma ordem é uma ordem, e para além disso eu salvei vidas” (com efeito, ele não enviava diretamente toda a gente para as câmaras de gás), e que não passava de um simples capitão. A sua família poderia vê-lo, a sua segunda mulher... Penso que ele se teria safado muito melhor se tivesse sido preso pelos alemães. Ele não teria tido que viver com essa paranoia, essa angústia que o engolia todos os dias.

Já com os israelitas teria sido diferente. Muito diferente. Eles ter-lhe-iam feito pagar caro, muito caro, num processo como o de Eichmann. Teria certamente sido condenado à morte.

Em parte, sim, ele foi castigado. Mengele autodevorou-se. Talvez seja esse o tema do livro. Como Mengele se autodevorou. Corroeu-se, corroeu-se. Sozinho. Porque no final ele era muito pouco procurado. Ele só foi verdadeiramente procurado durante três ou quatro anos. Em 30 anos isso não é nada. Mas nos anos 50 ele persuadiu-se de que por trás de cada palmeira da savana brasileira se escondia um agente da Mossad. E isso constitui uma matéria literária fascinante.

O seja?... Os ataques de paranóia, de demência? Do monstro que se volta contra si próprio?

O espaço fechado. A loucura. É preciso compreender que Mengele não é um aventureiro, é o filho de grande burguês e depois da guerra ambicionava ser professor na universidade. Fui a todo o lado. Descobri uma das fazendas no Brasil, onde ele passou dez anos. A não ser para uma estadia em viagem, você percebe o inferno que isso é para um burguês europeu. É um inferno: a humidade, o calor, os bichos, os mosquitos, as cobras…

Fonte: Público (Portugal)
https://www.publico.pt/2017/12/02/culturaipsilon/entrevista/josef-mengele-devorouse-a-si-proprio-1794028

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Mais sobre "Erradicação biológica (biologische Ausmerzung)"

Retornando a 2015, nesta publicação, conduzi Mattogno a se esforçar em sua ridícula tarefa (feita aqui, pág. 281-282) de neutralizar o relatório de imprensa de Rosenberg de 18 de novembro de 1941. Agora gostaria de expandir isso citando uma observação feita por Alex J. Kay, neste livro, que inclui uma excelente discussão sobre o papel de Rosenberg no processo de planejamento de ocupação da URSS até julho de 1941. Em 20 de junho de 1941, Rosenberg usou o termo "evacuação" para se referir à fome, não à deportação, dos russos étnicos, a quem Hitler havia decidido que não deveriam sobreviver ao bombardeio das principais cidades, principalmente Leningrado e Moscou (e posteriormente Kiev).

O trecho de Rosenberg veio no discurso apresentado no Tribunal Militar Internacional como 1058-PS; Hartley Shawcross leu o seguinte extrato ao tribunal em 27 de julho de 1946:

O objetivo de alimentar o povo alemão está neste ano, sem dúvida, no topo da lista das alegações da Alemanha no Oriente, e os territórios do sul e do Cáucaso do Norte terão de servir como um balanço para a alimentação do povo alemão. Não vemos absolutamente nenhuma razão para qualquer obrigação da nossa parte em alimentar também o povo russo com os produtos desse excedente de território. Sabemos que esta é uma necessidade desprovida de todos os sentimentos. Uma evacuação muito extensa será necessária sem qualquer dúvida, e é certo que o futuro dará anos muito difíceis para os russos [tradução em National Conspiracy and Aggression, III, pág. 716-717].

O uso por Rosenberg da "expulsão" como um eufemismo para a morte em massa, portanto, teve origem na contribuição de Rosenberg aos planos de fome pré-Barbarossa, iniciada por Backe, mas não explicitamente aprovadas por Rosenberg até este discurso de "evacuação". Como Kay mostra (aqui, pág. 689), Rosenberg estava usando "evacuação" para eufemizar as mortes de 30 milhões de pessoas.

Fonte: Holocaust Controversies
http://holocaustcontroversies.blogspot.com/2017/12/more-on-biological-eradication.html
Texto: Jonathan Harrison
Título original: More on "Biological eradication (biologische Ausmerzung)"
Tradução: Roberto Lucena

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