quinta-feira, 9 de junho de 2011

Morre Jorge Semprún - O preso 44.904 de Buchenwald

A cultura e a política se despidem de Jorge Semprún elogiando sua lucidez e compromiso.

O grande memorialista do século XX necessitou de duas décadas de amnésia deliberada para escriver suas recordações.


Ao centro, Jorge Semprún.
Todo o espectro político louvou seu compromisso intelectual e sua lucidez para denunciar os totalitarismos e a barbárie do século XX que sentiu na própria carne e que deu início a uma das grandes obras memorialísticas contemporâneas. Tanto na França como na Espanha políticos e intelectuais comentaram sua incorruptível independência e seus sucessos literários que sobreviverão em seu legado. Tanto o presidente espanhol José Luis Rodríguez Zapatero como seu colega Nicolas Sarkozy elogiaram a figura e a obra da testemunha privilegiada de um século terrível. Um resistente que sobreviveu à barbárie para nos vacinar contra ela numa obra de singular estatura.

Com vinte anos Jorge Semprún (Madrid 1923) foi preso pela Gestapo e enviado ao campo de extermínio de Buchenwald. Foi marcado com o número 44.904, uma marca indelével e princípio de uma experiencia terrível que marcaria sua vida e sua obra. Sobreviveu àquele inferno e foi libertado em 1945. Necessitou de duas décadas de «amnésia deliberada» para abordar aquela pavorosa experiência. Nunca deixou de se perguntar como poderia explicar a si e explicar aquele intenso «cheiro de carne queimada» que emanava dos crematórios.

A enfermidade o dobrou nesta terça-feira, com 87 anos, a lúcida testemunha de um século terrível. Ao sobrevivente e resistente antinazi, ao desconforme militante comunista, ao clandestino e múltiplo Federico Sánchez, ao rebelde que abominou o stalinismo, ao roteirista que construiu o armazém do cinema político e comprometido, ao intelectual modesto, ao europeísta de primeira fornada, ao político que reclamou pela democracia com Felipe González e que marchou decepcionado e aos pontapés, ao republicano que quis se despedir do rei, e ao escritor que brilhou nas línguas de Molière e Cervantes. Um Semprún que teve como pátria primeiro o horror e depois a linguagem, «a necessidade de comunicação que está na natureza humana».

Resistente nato, guardou «mais lembranças do que se tivesse mil anos» segundo afirmou ele mesmo em 'Adiós, luz de veranos'(Adeus, luz de verões) apropriando-se de um verso de Baudelaire. Umas recordações que repassamos através de sua palavra e que para conseguir emergir necessitaram daquela «amnésia» autoimposta enquanto trabalhou como tradutor para a UNESCO. Com eles reconstruiu na literatura uma vida de compromisso, resistência e militância contada em 'Adiós, luz de veranos'(Adeus, luz de verões), 'Viviré con su nombre, morirá con el mío'(Viverei com seu nome, morrerei com o meu), 'Aquel domingo'(Aquele domingo), 'La escritura o la vida'(A escritura ou a vida), 'Autobiografía de Federico Sánchez'(Autobiografia de Frederico Sánchez) ou 'Federico Sánchez se despide de ustedes'(Frederico Sánchez se despede de vocês).

Buchenwald: «Sabe o que é mais importante em ter passado por um campo? Sabe o que é isso, o que é o mais importante e o mais terrível, e a única coisa que não se pode explicar? O cheiro da carne queimada. Que fazes com a recordação do odor da carne queimada? Para essas circunstâncias há a literatura. Mas como falas disso? Como comparas? A obscenidade da comparação? Dizes, por exemplo, que cheira como frango queimado?...Eu tenho dentro de minha cabeça, vivo, o odor mais importante de um campo de concentração. E não posso explicá-lo. E esse cheiro irá comigo como já não se foi com outros», dizia.

Literatura e vida: «A escritura e os escritores são os únicos capazes de manter vivo a recordação da morte. Se não, se os escritores não se apoderarem dessa memória dos campos de concentração, se não a fazem reviver e sobreviver mediante sua imaginação criadora, será apagada com as últimas testemunhas, deixará de ser uma recordação em carne e osso da experiência da morte».

Holocausto: «Estão desaparecendo as testemunhas do extermínio. Cada geração tem um crepúsculo dessas características. As testemunhas desaparecem. Mas agora me está tocando viver para mim. Ainda há mais velhos que eu que passaram pela experiência nos campos. Mas nem todos são escritores, claro. No crepúsculo a memória se faz mais tensa, mas também está mais sujeita às deformações».

Detenção, tortura e resistência: «Mentalizei para mim: tinha que resistir, não devia falar. Optei por um conto que não pusesse em perigo a nenhum dos companheiros. Uma novelinha leve que nesses dias era possível se ler na própria imprensa dos colaboracionistas: eu era o pobre estudante que não tinha dinheiro, que ouvia uma conversa e que é encarregado de levar umas maletas cujo conteúdo desconhecia. Acredito que estavam metidas com o mercado negro e um dia descubri que estava metida com o transporte de armas, que não pude deixar porque te ameaçam».

Militância e expulsão do PC: «Fui o bode expiatório. Talvez fui imprudente; quando começou tudo, tinha que ter cortado para sarar. Em todo caso, isso acelerou meu desgosto, minha náusea e minha disposição em ir à Espanha clandestinamente», disse sobre seu abandono do PC francês. «Grande parte da minha vida consistiu em destruir tudo isso. Não em trai-lo, senão em destrui-lo no sentido de deixar de ser um bom comunista para ser um bom democrata. Disto meu interesse pela Europa, porque é uma das coisas que me ajudou a me distanciar do comunismo e do leninismo e a compreender as virtudes da razão democrática. Quando fui comunista de verdade durante 20 anos não é de se gabar haver estado nos salões com Louis Aragon».

Stalinismo: «arrependo-me ou renego de haver sido militante do comunismo stalinista? Não. Creio que naquele momento havia uma justificativa para isto. Arrependo-me de não haver saído do PC em 1956, o ano dos movimentos antissoviéticos na Polônia e Hungria? Não. Porque sou espanhol; se fosse francês, haveria sido o momento de romper. Mas na Espanha, quaisquer que fossem os crimes de Stalin, lutar com o PC contra Franco valia a pena».

Ministro: «Não sei o que pinto nesta fotografia, mas tentarei pintar algo» disse ao assumir a pasta da Cultura e topar com Alfonso Guerra «uma pessoa que crê ter opiniões culturais».

Memória e identidade: «Minhas memórias são um pouco vitorianas. Não há nada íntimo. São tão pouco íntimas que não falo jamais de Colette (sua esposa), por exemplo, e passei 55 anos com ela de companheirismo e matrimônio».

Os restos mortais de Semprún serão sepultados neste domingo numa cerimônia laica, em Garentreville, onde a família de sua esposa possui um sepulcro. Ao enterro comparecerá como representante do governo espanhol a ministra da Cultura, Ángeles González-Sinde.

09.06.2011

Fonte: elnortedecastilla.es(Espanha)
http://www.elnortedecastilla.es/v/20110609/cultura/preso-buchenwald-20110609.html
Tradução: Roberto Lucena

Ver mais:
Jorge Semprun: la sociedad no puede cambiarse, pero el hombre, sí.

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