terça-feira, 9 de março de 2010

Holocausto: Intencionalistas x Funcionalistas

Debate entre historiadores: Estava programada de antemão a destruição dos judeus da Europa?

Duas correntes historiográficas tem tentado compreender o modo como se organizou o genocídio dos judeus. Ambas estão de acordo em constatar a enormidade dos crimes cometidos, mas qual foi o papel pessoal exercido por Hitler? E qual o dos nazis em seu conjunto?

Uns são os "intencionalistas", que pensam que o genocídio estava já presente no primeiro programa de Hitler, entre 1919- 1920; os outros são "funcionalistas", que sustentam que o genocídio foi sendo executado sobre a marcha, com frequência mediante a improvisação e em meio a uma contenda entre diversos poderes do sistema nazista.

Os "intencionalistas": Para um considerável grupo de historiadores, as perguntas sobre o surgimento da solução final encontram resposta na retórica antissemita de Hitler que, em diferentes períodos de sua carreira, materializa nos judeus um objetivo constante. Desta forma, Hitler aparece como o motor da política antissemita nazi, manifestando em suas opiniões uma linha de pensamento coerente. Hitler é, assim mesmo, considerado como o único estrategista com suficiente autoridade e determinação para levar a cabo a realização da solução final. No que pode ser a obra mais lida sobre este aspecto ("A guerra contra os judeus"), Lucy Dawidowicz sustenta que o Fürher já preparava o terreno para o extermínio em massa em setembro de 1939, durante a invasão da Polônia. "A aniquilação dos judeus e a guerra eram interdependentes", escreve. As desordens da guerra proporcionaram a Hitler a cobertura necessária para cometer os assassinatos desenfreados. Tais operações necessitavam de um cenário onde as regras da moral ou os habituais códigos de guerra não tivessem lugar". Setembro de 1939 veio, pois, a desenvolver uma "dupla guerra": por uma parte, uma guerra de conquista buscando por meios tradicionais o controle de matérias-primas e a criação de um império; por outra, a guerra contra os judeus, a confrontração decisiva contra o principal inimigo do Terceiro Reich. Desta perspectiva, a ordem de extermínio em massa na escala europeia, lançada em finais da primavera ou durante o verão de 1941, deriva-se diretamente das ideias de Hitler acerca dos judeus, ideias que já haviam sido expressas em 1919. Pode, em diversas ocasiões, camuflar ou minimizar a importância de seu programa de aniquilação. Mas, insiste Dawidowicz, suas intenções não variaram jamais: "Hitler havia formulado planos de longo prazo para realizar seus objetivos ideológicos, e a destruição dos judeus era seu núcleo fundamental". Tomando a expressão do historiador britânico Tim Mason, Chistopher Browning foi o primeiro a qualificar de "intencionalista" esta interpretação que põe o acento sobre o papel exercido por Hitler na ação de pôr em execução o assassinato dos judeus da Europa, detectando um alto grau de obstinação, de coerência e de lógica no desenvolvimento da política antissemita dos nazis, da qual o principal objetivo era o extermínio em massa. Os "funcionalistas", que criticam esta corrente, insistem mais sobre a evolução dos objetivos nazis, ao compasso dos acontecimentos malogrados da política alemã e da interação entre esta e os mecanismos internos do Terceiro Reich.

(Michael Marrus: L´Holocauste dans l´Histoire. Eshel, 1990)
Título em português: A Assustadora História do Holocausto, Michael Marrus

Os funcionalistas: a corrente funcionalista se desenvolveu em torno de importantes historiadores alemães como Martin Broszat. Os trabalhos de Martin Broszat, de Hans Mommsen e de muitos outros põem em questão a ideia de que a evolução do Terceiro Reich fora o resultado da aplicação de um plano pré-estabelecido, enunciado no Mein Kampf("Minha Luta") e minuciosamente preparado durante o "período de luta" anterior à tomada de poder, em 1933. Rechaçam o fato de que tal programa pudesse se impôr sem repreender a todos os componentes da sociedade alemã e mais ainda ao resto da sociedade internacional. Criticam o postulado de base desta análise, chamada intencionalista, que sustenta que Hitler foi o fator determinante do sistema criminoso posto em funcionamento pelos nazis, e que a violência extrema e uma posição onipotente lhe permitira concretizar sua visão racista do mundo. Frente a esta perspectiva, os funcionalistas retomaram e desenvolveram uma ideia sugerida em 1942 pelo sociólogo exilado Fraz Neumann. Longe de formarem um bloco, o regime nazista estava submetido à forças centrífugas apartadas naquilo que a interação definia sua especificidade: o aparato do partido propiamente dito, suas múltiplas organizações satélites (profissionais, culturais, juvenis...), o exército, as forças econômicas, nas que se juntam os aparatos totalitários que escapam ao controle tanto do partido como do Estado. Dois fatos essenciais são deduzidos desta interpretação. Por uma parte, o sistema nazi se construiu sobre a dinâmica de um movimento descontínuo. A etapa final – a radicalização assassina -, não pode erigir-se no ponto de arranque de toda análise, numa espécie de aproximação teleológica, porque o Terceiro Reich esteve sujeito a uma temporalidade própria, é o produto de uma história que se trata precisamente de analisar. Distante de ser um sistema rígido e fechado, o estado hitlerista foi um sistema relativamente aberto, às vezes anárquico, em evolução permanente e que uma de suas molas foi a existência de fortes rivalidades entre as diversas fontes de poder, isso que Broszat denomina de a "policracia nazi". Por outra parte, neste sistema, a função de Hitler, que está longe de ser o ditador todopoderoso tantas vezes descrito, era a de garantir a coesão do sistema. Sua vontade pessoal era um fator menos determinante que o "mito do Führer", elaborado por uma propaganda eficaz e onipresente. Este mito ou esta mística tinham como objetivo mobilizar as energias, integrar os diferentes estratos sociais (pelo terror, a persuasão ou a exclusão) e legitimar um regime cujos mecanismos internos escapavam em parte a seus dirigentes.

Esta corrente tem se mostrado especialmente fecunda para estudar a gênesis da solução final, os processos de decisão e os complexos meios de sua aplicação. Sobre este ponto em concreto, os historiadores da corrente funcionalista reavaliaram para baixo o peso pessoal de Hitler em benefício de outras instâncias de decisão centrais ou locais, e tem insistido sobretudo na importância decisiva das circunstâncias políticas e militares de 1940-1941. Uma vez efetuada a deportação e a concentração em grande escala das populações judias do leste, e em particular a dos judeus poloneses, os responsáveis nazis, especialmente os da Polônia oculpada, encontraram-se ante a uma situação material inadministrável que foi a invasão da URSS, em junho de 1941, e o avanço das tropas alemãs na frente oriental se tornou ainda mais crítico. A decisão de exterminar em massa os judeus, que se produziu segundo eles no outono de 1941, seria o resultado de uma conjução de fatores: o fanatismo ideológico extremo (a condição necessária), as divergências dos aparatos burocráticos, as pujanças radicais resultantes e a anarquia de uma situação que os nazis não controlavam, apesar de que eles mesmos a haviam criado.

(Henry Rousso, prefácio de Norbert Frei, L'Etat hitlerien et la société allemande. Le Seuil, 1994)
Fonte: 2009 Proyecto Clío
http://clio.rediris.es/fichas/Holocausto/debate.htm
Tradução: Roberto Lucena

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